Gladiator (no Brasil, Gladiador) poderia ser considerado um filme de ação dotado de contornos dramáticos que retrata um período importante do Império Romano. Assim eu interpretei essa obra na época do lançamento, quando tinha apenas 9 anos de idade. O épico dirigido por Ridley Scott e com trilha sonora do genial Hans Zimmer com Lisa Gerrard ganhou inúmeros prêmios da sétima arte, incluindo o Oscar de Melhor Filme.
Mas Gladiador vai muito além disso.
Pano de fundo
É importante ressaltar que o filme não tem plena acurácia histórica, mas isso está longe de prejudicar a sua qualidade.
O início retrata a campanha dos romanos contra os povos germânicos em 180 d.C. O imperador era Marcus Aurelius, governante virtuoso que estava em avançada velhice e já planejava a sequência de Roma após a sua partida.
Marcus Aurelius era pai de Lucilla e Comodus, o sucessor natural que apresentava um comportamento volátil e imaturo. Em decorrência disso, o imperador considerava inapropriado que seu filho governasse após sua morte, preferindo que ocorresse uma transição de Império para República, o que na visão de Marcus Aurelius era a verdadeira essência de Roma. Tal manobra política demandava uma liderança firme, estimada e desprovida de inclinações autoritárias, qualidades que o imperador enxergava no seu general Maximus Decimus Meridius.
Ao conversarem sobre o futuro do império e o papel de Maximus na transição, o general inicialmente recusou a oferta. Ele não queria Roma (Rome), queria sua casa (home), da qual havia se ausentado há quase três anos. Maximus, porém, sabia tão bem quanto o imperador que Comodus não podia subir ao trono. Decidiu, portanto, refletir sobre a situação até o dia seguinte e determinar se ajudaria a concretizar o plano de Marcus Aurelius.
Durante esse hiato entre a oferta e a decisão final de Maximus, Comodus é informado pelo seu pai sobre o futuro de Roma.
Caim (Comodus) x Abel (Maximus)
Ao saber dos planos do imperador, Comodus é consumido pela ira e inveja em relação à Maximus, o qual representava a sua antítese e desfrutava do favor de seu pai. Uma irmandade simbólica que remonta à história de Caim, que assassinou Abel por não suportar a rejeição divina ao seu sacrifício em detrimento do oferecido pelo seu irmão.
No decorrer da história fica claro que Comodus é escravo de suas paixões e não tem êxito em cumprir os seus desejos. Ansiava pela aprovação do seu pai, que preferiu Maximus. Aspirou possuir sua irmã Lucilla, mas ela amou Maximus. Fez de tudo pela aprovação do povo romano, mas eles estimaram Maximus. Comodus é o triste retrato do homem iníquo e orgulhoso que vê suas aspirações sucumbirem diante de si.
Com o cenário que se desenhava, Comodus assassinou Marcus Aurelius e ordenou a morte de Maximus, bem como de sua família. O grande general escapou da sua execução, mas não chegou a tempo de salvar sua esposa e filho. Roma tinha um novo imperador e Maximus tinha nada.
Desfalecido, ferido e despojado, Maximus foi levado por uma caravana de comerciantes e vendido como gladiador. Naquele momento, o ex-general de Roma trilhava a parte mais difícil da sua heroica jornada.
Maximus e a Jornada do Herói
No livro "O Herói de Mil Faces", Joseph Campbell explica a teoria do herói arquetípico, um tipo de personagem presente em diversas mitologias e culturas, de Jesus Cristo a Odisseu, de Buda a José do Egito.
A história desse herói é baseada em uma jornada que inclui, de forma geral: partida, catabasis, ascensão e retorno.
Esses momentos ocorrem durante a trajetória de Maximus:
Partida: o momento não é registrado no filme, mas 2 anos e 264 dias antes dos eventos retratados, Maximus havia deixado a sua família para lutar pelo Império Romano contra os germânicos.
Catabasis: do grego κατὰ (baixo) + βαίνω (ir), representa o momento em que o herói sofre, se confunde, desce ao inferno e questiona o seu propósito pessoal. Essa fase ocorre quando Maximus perde a sua família, remove sua tatuagem de legionário romano e torna-se um gladiador impiedoso e violento. Com a liberação das lutas no Coliseu promulgada por Comodus, Maximus chega a Roma com sede de vingança.
Ascensão: após ouvir de Lucilla que já não era o mesmo homem nobre e de princípios, Maximus volta a si. Na sua luta seguinte, o ex-general poupa a vida do seu adversário na arena e é aclamado pelo povo como "O Piedoso". A partir dali, Maximus conquista o respeito e admiração de todos à sua volta. Com a participação do ex-general, o Senado romano desenha um plano para destituir o imperador e cumprir o desejo de Marcus Aurelius.
Retorno: após o plano para derrubar Comodus fracassar, Maximus cumpre a sua vingança ao tirar a vida do imperador na arena. No entanto, seus ferimentos não permitem que ele siga com vida. Reverenciado por Roma, Maximus volta para a sua família.
Naquele momento ele fechava o ciclo da sua aventura e retornava à sua casa, nos montes, um lugar muito simples que cheirava a ervas durante o dia e jasmim quando de noite. Figos, maçãs, peras. O solo negro como o cabelo da sua esposa. O seu filho brincando com os pôneis. Home, not Rome.
A manifestação dos Arquétipos Jungianos em Maximus
Baseados na psicologia jungiana, Robert Moore e Douglas Gillette escreveram o livro "Rei, Guerreiro, Mágico e Amante", um tratado sobre os quatro principais arquétipos masculinos que formam a base da pirâmide* que representa o indivíduo.
Maximus manifesta todos os arquétipos em momentos distintos até uni-los no final:
Rei: Maximus exerce uma autoridade e liderança natural, conquistando a lealdade dos seus comandados nas tropas romanas e reverência dos demais gladiadores.
Guerreiro: durante seu momento de catabasis, o ex-general evoca toda a sua fúria e experiência militar para se tornar um gladiador implacável e sanguinolento. Não à toa, Moore e Gillette alertam que o arquétipo do guerreiro jamais deve dominar totalmente as ações do homem.
Mágico: esse arquétipo se relaciona à habilidade e sabedoria do homem em desenhar planos e executar tarefas com maestria, algo que Maximus demonstra durante as batalhas frente aos germânicos e na primeira aparição no Coliseu romano.
Amante: o amor à sua esposa e ao filho que foram mortos é uma das forças que mantém Maximus vivo e perseverante no decorrer da história.
Ao unir todos os arquétipos, Maximus fez jus ao seu próprio nome por alcançar o ideal máximo, a epítome do homem de princípios.
Diante dos ensinamentos transmitidos e da profundidade tratada pelo filme, é impossível assisti-lo como apenas mais uma épico hollywoodiano. Gladiador nos oferece uma visão sobre como ser fiel aos seus princípios, escolher a simplicidade ao invés da pompa, abraçar suas responsabilidades e caminhar de forma justa independente das circunstâncias impostas pela vida.
Em tempos de governantes que agem como Comodus, de turbas intolerantes e insensatas, abraçar a jornada do herói é um ato de coragem.
"O que fazemos em vida, ecoa na eternidade."
Maximus
* A pirâmide aparece como uma representação do indivíduo em várias obras de Psicologia, como no exemplo de Abraham Maslow.
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