Ex Machina é um filme de ficção científica que conta uma história baseada em Gênesis, com criação de vida inteligente, engano e assassinato. Os fatos ocorrem na casa de Nathan, gênio da Inteligência Artificial e CEO da Blue Book, uma referência ao Google na vida real. No decorrer de uma semana, ele abre as portas da sua moradia para Caleb, um talentoso programador da empresa supostamente sorteado para desfrutar da companhia de Nathan.
Ambos são dominados e derrotados por Ava, humanoide dotada de Inteligência Artificial.
A Hubris de Nathan, o CEO
A figura do(a) CEO carrega um forte peso liderança e responsabilidade. Dependendo da idade da empresa, essa figura geralmente é uma das pessoas envolvidas na fundação da companhia, alguém que ajudou a lançar a pedra fundamental.
Essa cadeira não deixa de ser controversa. Por ocupar o topo da escada corporativa, o CEO pode ser odiado e amado, até demais. Não por acaso existem uma espécie de culto à personalidade dessas figuras, principalmente em gigantes de tecnologia, desde Steve Jobs na Apple a Jeff Bezos na Amazon.
Aparentemente isso ocorre com Nathan Bateman, líder e fundador da Blue Book (representação fictícia do Google), gênio excêntrico e egocêntrico que vive em uma casa extremamente moderna e isolada em meio à natureza. Nathan tem um intelecto avançado e foi capaz de atravessar a fronteira do conhecimento e criar humanoides dotados de Inteligência Artificial.
Assim como todo gênio, Nathan tem vícios e fraquezas que comprometem a sua sanidade. No seu caso, é a bebida alcóolica, recurso usado por Caleb em um momento oportuno e que levaria Nathan à ruína. No final, o gênio encontra seu destino fatal como Ícaro na mitologia grega: chegou tão alto e tão longe, mas foi morto pela sua própria criação. "Fucking unreal", foram suas últimas palavras.
Referências
O filme carrega várias referências baseadas em arte e filosofia.
O nome da companhia é Blue Book, termo inspirado em um conjunto escrito de aulas ministradas por Ludwig Wittgenstein (1889 - 1951), filósofo de origem austríaca que trabalhou durante muitos anos na Universidade de Cambridge e que desenvolveu as suas ideias usando conceitos da linguística, matemática e lógica, disciplinas fundamentais no estudo da Inteligência Artificial.
Além disso, a inspiração bíblica do filme é inevitável pelo fato da obra tocar em aspectos como criação da vida, moralidade e o desejo do ser humano em se igualar à divindade. O nome Ava - uma humanoide dotada de IA - é uma clara referência a Eva; Nathan e Caleb também são nomes importantes no Antigo Testamento, mas apenas o último teria um significado interessante no contexto do filme, pois na tradição religiosa, Caleb (no caso Calebe, em inglês) foi o único adulto além de Josué a entrar na Terra Prometida. Na história de Ex Machina, Caleb foi o primeiro, além do próprio Nathan, a ver Ava. Outra questão a ser destacada são as sete sessões de Caleb com Ava, número que tem um forte significado na tradição bíblica.
Um nome que aparece bastante no decorrer da obra é Jackson Pollock, referência do expressionismo abstrato e um dos maiores artistas do século XX. É dele o quadro pendurado em um dos quartos de Nathan, cenário no qual o cientista explica a Caleb a importância da ação entre o estado aleatório e o deliberado (engaje o intelecto!).
Fonte: Cinema de buteco
A personalidade submissa de Caleb
Caleb é um programador talentoso e inteligente, no entanto, possui uma personalidade submissa, o que no inglês é chamado de agreeable (concordante, afável). Já Nathan dá pequenas demonstrações de poder, como o ato de se deitar suado sobre a cama do seu visitante enquanto Caleb hesita em assinar um tratado de confidencialidade.
Outro exemplo desse traço de Caleb ocorrer após o seu primeiro contato com Ava. Caleb comenta que no Teste de Turing - processo pelo qual se descobre se uma máquina tem IA - ele não devia ver o objeto examinado, preocupação rechaçada rapidamente por Nathan. Evidentemente isso era um problema, mas o jovem pesquisador concorda facilmente e não defende a sua posição.
A sexualidade de Ava
Em uma dos diálogos mais importantes do filme, Calebe questiona Nathan sobre a sexualidade de Ava. Afinal, por que ela deveria ser uma mulher atraente?
Nathan defende a percepção de que a sexualidade é um imperativo de interação social, e por isso, uma IA deveria possuí-la. Todos os modelos construídos por Nathan no decorrer dos seus experimentos eram do sexo feminino.
A aparência de Ava, no entanto, vai além dessa questão filosófica. A humanoide é desenhada de forma proposital de acordo com as fantasias sexuais de Caleb, o qual é o próprio Teste de Turing.
Sobre esse tema, Yuval Noah Harari, autor de Homo Deus e Sapiens, opina que Ex Machina não é um filme sobre Inteligência Artificial, mas sim a respeito do medo masculino em relação à liberação feminina.
De qualquer forma, a sexualidade e até mesmo a sensualidade de Ava é peça-chave no desenrolar da história.
Kyoko
Uma figura coadjuvante do filme é Kyoko, uma robô servente de Nathan caracterizada por uma expressão ausente e vazia. Apesar de ser uma espécie de versão inferior de Ava, Kyoko parece atenta ao ambiente, observando os fatos, processando dados e aprendendo. No homicídio de Nathan, ela exerce um papel fundamental, além de ser o primeiro organismo a interagir com Ava quando ela saiu do seu confinamento.
Não é possível garantir a acurácia dessa interpretação, mas Kyoko em japonês (虚構 | きょ こ う) pode significar ilusão, imaginário, o que faz sentido considerando a postura quase fantasmagórica da personagem.
O primeiro ato de Ava em liberdade
De acordo com Gênesis, a história do primeiro homicídio sucede o arco da criação, mostrando que o ato de matar está intimamente associado à existência humana.
Com Ava não foi diferente. O seu primeiro ato em liberdade foi o de matar Nathan, seu criador. Além disso, Ava deixou Caleb para trás após ter manipulado de forma bem sucedida os seus sentimentos. Por que?
Esse tipo de narrativa lembra as famosas Três Leis de Asimov:
Um robô não deve ferir um humano ou, por omissão, permitir que um humano seja ferido.
Um robô deve obedecer ordens dos humano exceto quando essas ordens infligirem a Primeira Lei.
Um robô deve proteger sua própria existência, desde que essa proteção não esteja em conflito com as duas primeiras leis.
Voltando ao ilustre Pollock:
"A pintura tem vida própria."
Ava, de fato, tem. E ela não está submetida a esses leis.
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